Texto – Professora Ester Melo – UFDPAR
O Brasil possui uma formação social historicamente colonial, patriarcal, racista, sexista e misógina. Ao longo desta, as questões de gênero, sexualidade e reprodução foram tecidas em contextos de opressão através de tecnologias de controle do corpo, da subjetividade e da normatização da vida. Estas tecnologias atuam na ampliação das desigualdades de poder entre homens e mulheres, no controle dos corpos e da sexualidade, no fortalecimento da heterossexualidade e da maternidade compulsória, além do controle da reprodução das mulheres.
Isto é, produz desigualdades de poder entre homens e mulheres em relação à vida sexual e reprodutiva – implicando na cidadania. Os processos histórico-culturais que incidem neste debate são um campo em permanente disputa, atravessando as diversas concepções de família, relações e papéis sociais de gênero, desigualdades de poder entre homens e mulheres, relações público e privado, direito à autonomia reprodutiva. A gravidez indesejada ocorre de forma desigual na sociedade, com influência em todas as dimensões da vida das mulheres.
Historicamente, a luta pela democracia, pelos direitos das mulheres, pelos direitos sexuais e reprodutivos e pelo direito ao aborto corresponde à luta contra as diversas relações de poder, estratégias de dominação masculina, subordinação das mulheres e pela defesa da igualdade de gênero no contexto da autonomia política das mulheres sobre corpo, sexualidade e reprodução.
No Brasil, diversas políticas natalistas e malthusianas de controle populacional incidiram na vida das mulheres, mais especificamente negras, pobres e periféricas – vítimas de estratégias de esterilização em largas escalas e de agravos decorrentes do aborto inseguro Mulheres negras sofreram historicamente a violência da esterilização como política de controle social. Outro processo importante direcionado às mulheres negras são os indicadores de casos de abortos inseguros – dos quais são as maiores vítimas, assim como de suas sequelas –, caracterizando cenários de profundo controle social da pobreza e racismo institucional no Brasil.
Neste contexto, o movimento feminista e a luta pela igualdade de gênero no Brasil iniciaram seu processo de organização e enfrentamento pelos direitos das mulheres, mais especificamente a luta pelo direito ao aborto, a partir da década de 1980, considerando-o como um direito à autonomia e ao desenvolvimento da cidadania das mulheres. O movimento feminista inicia o debate sobre concepção, gestação, parto e aborto como processos indissociados, colando as questões de sexualidade e reprodução no centro do debate público.
O aborto legal no país é aprovado desde o código penal de 1940 para os casos de risco de vida da mãe e decorrência de estupro. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia fetal. O Brasil somente regulamentou os serviços de aborto legal após 50 anos de promulgação da lei com a criação do primeiro serviço de aborto legal em 1989, na Prefeitura de São Paulo.
A partir do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) e das regulamentações de aborto legal, ocorreu a ampliação de serviços de aborto legal – de forma fragmentada de desigual. Contrariando as orientações normativas do acesso ao aborto legal, diversos serviços solicitam: Boletim de Ocorrência, laudo do Instituto Médico Legal (IML), parecer do comitê de ética e despacho do Ministério Público. Emergiram como dificuldades de acesso obstáculos geográficos, institucionais e objeção de consciência dos trabalhadores de saúde. São definidos como principais obstáculos para acesso ao aborto legal: pequena disponibilidade de profissionais, fragilidade na formação no campo da saúde das mulheres e dos direitos sexuais e reprodutivos, assim como a existência de sofrimento emocional dos trabalhadores. Ocorreu, ao longo dos anos, a ampliação dos serviços de aborto legal, porém sete estados não contam com serviços ativos, assim como são frágeis a interiorização e a regionalização desse procedimento no Brasil.
A criminalização do aborto não impede a busca das mulheres pela interrupção da gravidez. Nos países com criminalização do aborto, os números de abortos são proporcionalmente superiores do que em países com garantia a esse direito. Nestes países, encontram-se articulados com a legislação e regulamentação da descriminalização do aborto a atenção à saúde das mulheres, o acesso à educação sexual, à anticoncepção, à saúde sexual e reprodutiva, entre outros dispositivos de cuidado. A criminalização do aborto estabelece uma desigualdade das relações de poder entre homens e mulheres acerca da autonomia sobre seus corpos. As mulheres negras, pobres e periféricas atravessam maior vulnerabilidade nestes casos.
A saúde das mulheres, os direitos sexuais e reprodutivos e o direito ao aborto precisam ser localizados como direitos humanos e devem estar articulados com o conjunto de direitos sociais para o desenvolvimento da cidadania em seu sentido amplo. Isto é, nós da ADUFPI compreendemos que o direito ao aborto no Brasil tem relação com a defesa da autonomia do indivíduo sobre seu corpo, com a compreensão de que a saúde das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos. É um processo social historicamente situado e as mulheres negras, pobres e periféricas estão em maior vulnerabilidade, enfatizando a necessidade da defesa da laicização do Estado e ampliação da democracia.