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Nota da Regional ADUFPI de Floriano: O direito às palavras-histórias e à desobediência.

Colegas professoras e professores,

 

Nas palavras sentidas e vivenciadas pelas travessias do tempo-espaço de momentos múltiplos de histórias que se transformam em memórias, mas, numa grande ousadia, continuam constituindo mais histórias entre passado, presente e futuro, cá estou! Essas palavras-histórias de, e em cada uma, cada um, eclodiram em forma desta mensagem que dedico ao Dia das professoras e dos professores, deste ano de 2022. Uma mensagem que se fez na articulação entre agir e pensar, em um continuum que talha a compreensão da identidade em inseparabilidade à alteridade, na desconfiança que se empenha em resgatar a confiança, no esforço do exercício político pela e na docência via interações e práticas cotidianas, e na coragem da árdua produção da conscientização de si por meio do coletivo, porque é uma mensagem de história humana que se fundou nas teias da realidade nua e concreta. Uma mensagem com subsídios de mais palavras-histórias cotidianas, pois somos tantos e tantas em cada uma, cada um de nós e que, enquanto massa, já somos classe em relação ao capital, resta, pois, que nos unamos e formemos uma classe para nós, o que conduzirá em classe para si em unidade.

 

Na vida vivida, vivência ou perejivanie, para Vygotsky (1999, p. 244), a unidade está em experimentarmos:

 

[…] ao mesmo tempo os acontecimentos em dois sentidos opostos […] cada momento dado […] unifica ambos os planos, e é a suprema unidade permanentemente dada da contradição que serve de base […] a força que unifica as duas correntes opostas, força essa que reúne sempre os dois sentimentos opostos em uma vivência […] sempre sentidos por nós como unidade, uma vez que estão unificados. […] E a simples duplicidade […] é substituída […] por uma duplicidade imensuravelmente mais complexa e de ordem superior. As contradições não só convergiram como mudaram de papéis, e esse desvelamento […] das contradições funde-se […] na vivência […] porque, no fim das contas, o sujeito só aceita como suas essas vivências. Pois, os seus sentimentos […] não encontram […] uma solução simples e superficial. […] sente e vivencia todas aquelas contradições difíceis que lhe dilaceram a consciência e o inconsciente.

 

Ocorre que contradição, diferentemente do que se aprende via senso comum, não é “o monstro do Lago Ness”, ao contrário, é o motor da humanidade: porque divergimos entre nós, somos mais ao nos tornarmos outros e outras capazes de, em situação de alteridade, impactarmo-nos mutuamente, de modo que nossas consciências se expandam. Portanto, em unidade somos continuamente movidas e movidos pela contradição. O que diverge completamente de antagonismo. O antagonismo mina a nossa energia vital que se traduz pela nossa potência em perseverar na existência.

Isso posto, ao escrever esta carta veio-me à mente: Por que a carreira da docência? Mediante diferentes embargos que desgastam a vida docente, a exemplo da desvalorização e ausência de reconhecimento da profissão como alicerce para a democratização das instituições de ensino, conhecimento e sociedade, por que a carreira da docência? Em um momento histórico e desumano o qual vivenciamos com desmonte na educação e aceleração da privatização das universidades, por que a carreira da docência? Onde as políticas públicas, sociais e educacionais não conseguem ir contra as logísticas mercadológicas e econômicas, por que a carreira da docência? De onde recursos para a ciência e tecnologia foram retirados, por que a carreira da docência?

“Apesar de você, amanhã há de ser um outro dia”, como bem diz Chico Buarque na sua canção e que muito vai ao encontro das minhas reflexões na tese de doutorado ao dizer que “convém ainda mais o ensino e a educação para a insurgência, a subversão, a ruptura dos silêncios, a quebra de paradigmas, de estruturas cristalizadas pelo poder como mecanismo de resistência. A travessia exige”. A carreira da docência exige travessia, porque há na carreira docente a urgência de distinguirmos essência de aparência. Conhecer é ultrapassar a aparência e só o conhecimento que expande a consciência rumo à criticidade pode dar conta disso, permitindo-nos a desconstrução de mitos como o monstro do Lago Ness, aqui citado e ambientado na Escócia, como também de pseudo-mitos mais próximos, geograficamente falando. Há na carreira docente o sentido ético da vida, pois a docência exige travessias de coragem, desobediência e ousadia.

 

À discussão sobre os sentidos e significados da docência, tomo a liberdade, com a devida autorização, de citar uma aluna do Curso de Licenciatura em Pedagogia Presencial do CAFS/UFPI, em uma carta dedicada a Andressa Pellanda (Coordenadora Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e integrante da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala), elaborada na disciplina de Financiamento da Educação. Diz tal carta:

 

“Lembro, e aqui compartilho com você que, quando fazia o Ensino Fundamental II, todas/os as/os alunas/os corriam para tentar sentar em uma carteira não tão quebrada. Na grande maioria das vezes, não conseguia usufruir dessa carteira melhorzinha porque o carro (pau de arara) chegava atrasado na escola. Quantas vezes chorei no banheiro por me sentir humilhada por não ter uma cadeira para sentar e assistir a aula de modo mais confortável. Com o passar dos anos, esse sentimento de humilhação foi mascarado por uma falsa força e discurso de: “Tudo bem! Não preciso chorar. Sou muito esforçada e não preciso de cadeira”. A partir do enraizamento dessa ideia, não corria mais para conseguir uma cadeira melhorzinha. Simplesmente sentava no chão ou pegava a cadeira quebrada que sobrava e, na parte do assento, fazia uma espécie de mesinha para colocar meu caderno e o livro.

Hoje, Andressa, na graduação, em uma universidade pública, entendo como tal vivência gerou e gera sofrimentos incuráveis dentro de mim. Os sentimentos de humilhação e raiva se transformaram em revolta. É necessário se revoltar para, assim, tensionar a história de maneira a provocar as fissuras necessárias às rupturas que podem vir a ser revolução. Não foram apenas os episódios das corridas para quem conseguiria uma cadeira melhorzinha, foram também o descaso que as pessoas dão às instituições de ensino públicas. Foram ausência de merenda escolar, ausência de ventilação nas salas de aula, de livros de literatura, de banheiros com o mínimo de estrutura, ou seja, a falta de dignidade para as/os alunas/os, professoras/es e funcionárias/os. Os bodes expiatórios da classe burguesa não respeitam os corpos historicamente marcados pela marginalização, ampliam discursos meritocráticos para que, desse modo, continuemos acreditando que estamos na miséria porque não tivemos forças o suficiente para correr atrás do que queríamos. Há violências físicas nos discursos! […]

[…] Perdemos a esperança, porque arrancaram de nós até os sonhos. Agora é muito difícil sonhar, pois para sonhar, Andressa, é preciso enxergar possibilidades. Estando na miséria, em situação constante de exclusão, não dá para sonhar. Não temos escolhas! Tiraram-nos o direito de viver, sonhar e pensar”. Não existe investimento na educação e nem uma educação de qualidade sem consciência política, social, cultural, histórica, territorial, identitária e de classe”.

 

Vivencio no meu corpo-mente através das palavras-histórias da leitura da carta desta aluna um encontro que gerou tantos outros encontros: precisamos confrontar aquilo que acreditamos conhecer, confrontar as realidades, os discursos, as ações e as não ações, confrontar nossos conhecimentos, necessitamos confrontar a nós mesmas e mesmos. Além disso, o conteúdo posto pela aluna na carta, faz em si confrontos, pois ao considerar o ato dialógico como um mecanismo que mobiliza discussões críticas pelo aguçar das reflexões, argumentações e questionamentos sobre as mazelas que tanto adoecem e destroem vidas, traz à tona possibilidades de pensar novas formas de desconstrução das injustiças sociais e, certamente, visibilizar as existências invisíveis. É, também, compreender que a educação não se faz na neutralidade: todo ato humano é político, inevitavelmente. As histórias são encontros com tantas outras histórias e os discursos uma via de mão dupla, no sentido de que, ao mesmo tempo, pode ser usado para a alienação, assim também como fonte de libertação, impactando no processo de ensino e aprendizagem enquanto expansão da consciência crítica. Entenda-se que, liberdade nesse registro, refere-se à consciência das necessidades e não a livre arbítrio.

 

Continuo questionando (e quem sabem vocês também estejam fazendo o mesmo): Por que a carreira da docência? Façamos agora um exercício crítico-reflexivo sobre o local em que nos encontramos para realizar essa comemoração: se esse espaço (propriedade privada) foi pago com dinheiro do sindicado que é dinheiro da classe trabalhadora, já se torna em si um ato antagônico, e se foi, porventura, emprestado, mais antagônico se torna, porque demonstra em si sinais de que pode haver interesses em se beneficiar nesse empréstimo ao dar às professoras/es alguma coisa em troca de uma outra coisa. Então, assim, por que o sindicato há muito tempo não oferece uma formação política e sindical para a gente? Antagonismo, antagonismo e antagonismo! Então, continuo indagando: Por que a carreira da docência?

 

Por que a docência? A docência universitária, por meio da unidade (lembrem-se do conceito de unidade) afeto-cognição, é lugar para o antagonismo que se faz presente  nas decisões tomadas pelas professoras e pelos professores em apoiar o atual reitor que não ficou em primeiro lugar na lista tríplice, mas que foi indicado por aquele que ocupa a cadeira da Presidência da República do Brasil, constituindo-se, portanto, em mero interventor, tendo que infringiu o princípio democrático na universidade. Além do que, já passou da hora da universidade modificar essa situação para não ser mais necessário ir para Presidente da República nomear um reitor na lista tríplice: que seja nomeada ou nomeado o/a mais votada/o, bem como adotado o voto paritário para todas as categorias da comunidade acadêmica.

 

Continuo perguntando: Por que a carreira da docência? Em um país em que seu representante diz que o erro da ditadura foi torturar e não matar, por que a carreira da docência? Em um país onde o seu represente diz que irá realizar um golpe e fechar o congresso, por que a carreira da docência? Em um país onde seu representante diz que o estado não é laico e sim cristão, por que a carreira da docência? Em um país no qual seu representante diz que as pessoas LGBTQIA+ devem morrer e que não existe homofobia e racismo no país, por que a carreira da docência? Em um país em que seu representante diz que os indígenas devem comer capim para manter suas origens, por que a carreira da docência? Em um país em que seu representante diz que não temos uma dívida histórica com os afrodescendentes, por que a carreira da docência? Em um país em que seu representante falou da pandemia como uma gripezinha, menosprezou as mortes e que foi contra a vacina, por que a carreira da docência? Em um país em que seu representante tem funcionários fantasmas, rachadinha, milícias, liberação de orçamento secreto, obras sem licitações, contrabando de madeira ilegal, negociata da Coronovac, sigilo de mais de 100 anos para cartão corporativo, 51 imóveis comprados em dinheiro vivo… por que a carreira da docência?

Toda essa problemática ecoa no poema a seguir, também escrito por aluna do Curso de Licenciatura em Pedagogia Presencial:

 

Ouviram os gritos dos indígenas, às margens do sangue invisível

De um governante genocida, o brado retumbante

E o sol do fascismo, em raios fúlgidos

Estrangulou o país a todo instante

 

Se o cristão dessa desigualdade

Conseguira conquistar com perseguição

Em teus discursos, ó hipocrisia,

Desafia a democracia a continuar na escravidão

 

Ó Pátria desgraçada

Feminicida

Morre! Morre!

 

Brasil, um sonho escravocrata, um patriotismo tosco

De desamor e de desesperança, à terra desce
Se em teu Preconceito Linguístico, sombrio e arrogante

A imagem das mais de 700 mil vidas interrompidas de Brasília resplandece

Gigante pelo sangue nordestino
És xenofóbico, és misógino, império neofascista
E o teu futuro está no impasse entre o sonho possível e o império dos cretinos

Terra abandonada

Entre outras mil
És tu, Brasil
Ó Pátria imbecil!
Das filhas deste solo, és mãe assassinada
Pátria sexista, Brasil!

Deitada eternamente em berço do desmatamento
Ao som do fuzil e à luz do desmonte da educação
Racista, ó Brasil, enfeitado pelo estupro
Iluminado aos olhos da exploração, opressão!

Do que a terra mais desvanecida
Pelos crimes hediondos às minorias, e mais e mais exclusão

Nossa norma culta que oculta

Nossa vida, no teu seio, mais aversões

 

Ó Pátria desgraçada

Feminicida

Morre! Morre!

Brasil, de genocídio és símbolo
A bandeira que lucra com as injustiças

E diga o decreto fascista como protocolo
Guerra no futuro e incerteza no passado

Mas se ergues da democracia o direito à vida

Verás que um filho teu vai lutar pela ditatura

Aumentam as fakes news, quem adora o imbrochável, a própria ignorância enaltecida

 

Terra abandonada

Entre outras mil
És tu, Brasil
Ó Pátria imbecil!
Das filhas deste solo, és mãe assassinada
Pátria sexista, Brasil!

 

É nesse cenário caótico e violento que destrói experiências e vivências cotidianas de ser e existir e confiar na educação, bem como intensificam as desigualdades históricas que atravessam gerações e epistemologias, que nós – classe trabalhadora – vamos vivendo nas impossibilidades e resistindo por possibilidades. Esse viver e resistir não é solitário, ao contrário, é uma rede que se constrói simultaneamente em outros corpos, ao passo que embrulham os empecilhos e lutam pela garantia do direito à educação e, também, à vida que está instituída legalmente na Constituição Federal de 1988. Estamos perdendo dia após dia a democracia. Estamos perdendo o direito à vida. Um país genocida de memória curta, em que a elite não quer perder seus privilégios mesmo que assassinem (como assassinaram) milhares de pessoas trabalhadoras.

 

Continuo me perguntando: Por que a carreira da docência?  Há na docência um instrumento a serviço da justiça social, porque há na docência questionamentos e incômodos. Há na docência a formação coletiva, porque somos tantos em cada um e cada uma de nós. Há na docência ser e tornar-se educadora e educador, porque somos corpos políticos e prenhes de conhecimentos. Há na docência a desobediência, porque para desobedecer precisamos continuar nos permitindo aprender e desaprender, especialmente. Há na docência diálogos múltiplos, porque lutamos pela não extinção dos direitos. Há na docência confiança, porque estamos, mas não somos corpos descartáveis. Há na docência resistência, porque somos parte de um todo maior: classe trabalhadora.

 

Continuo me questionando: Por que a carreira da docência? Esse questionamento se transforma em outro: Por que ser professora e professor?  Que se transforma em mais outro: Por que ser e tornar-se professora e professor cotidianamente? Há várias respostas e mais e mais questionamentos, mas o fato com o qual a docência não pode compactuar é com a barbárie instalada no Brasil.

 

 

Autoria das  Professoras Grasiela Maria de Sousa Coelho e Maria Lizandra Mendes de Sousa