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Reforma Administrativa e Conjuntura Atual: análise crítica da PEC 32

Este é um texto de análise da conjuntura relacionada à Reforma Administrativa, elaborado pela Vice-Presidente da ADUFPI, Professora Bárbara Johas, com o objetivo de oferecer uma leitura crítica e detalhada sobre os impactos da PEC 32 para o serviço público, os servidores e a sociedade.

A conjuntura política brasileira volta a colocar no centro do debate a chamada Reforma Administrativa, apresentada sob a justificativa de modernizar o Estado, mas que, em sua essência, traduz um projeto de redução da presença estatal, de precarização das relações de trabalho e de enfraquecimento da capacidade pública de garantir direitos sociais. O cenário que se desenha não é novo: as sucessivas tentativas de alterar a estrutura do serviço público, desde a Emenda Constitucional 95 até a recente ofensiva em torno da PEC 32, apontam para a consolidação de um Estado mínimo para os trabalhadores e de um Estado máximo para o mercado.

A proposta em tramitação agrega diferentes medidas já apresentadas nos últimos anos e se articula em torno de uma narrativa de combate a supostos privilégios e de busca por eficiência administrativa. Contudo, essa retórica esconde as reais intenções: ampliar contratações temporárias, fragilizar a estabilidade e desmontar carreiras que são pilares da administração pública. O próprio Ministério da Gestão e Inovação (MGI), em posição ambígua e contraditória, acena, de um lado, com a manutenção da estabilidade e, de outro, com a diversificação de regimes de contratação e a plataformização dos serviços públicos, sinalizando que a reforma já está em curso por instrumentos infralegais.

No bojo da Reforma Administrativa, estão sendo discutidas medidas que, se aprovadas, desorganizam profundamente as relações de trabalho no setor público. Entre elas, destacam-se: a criação de uma lei nacional para admissão de cargos temporários nas três esferas de governo, com a modificação do Art. 37 da Constituição Federal, eliminando a exigência de “excepcional interesse público” e abrindo brechas para contratações precárias e politicamente orientadas; a possibilidade de perda de cargo de servidor estável por insuficiência de desempenho, por meio da incorporação do PLP 51/2019, que regulamenta o Art. 41 da Constituição, instituindo normas únicas de avaliação de desempenho e Programas de Gestão de Pessoal (PGPs); e a alteração das regras do estágio probatório, a partir da modificação do Art. 20 da Lei 8.112/1990, que reintroduz ciclos semestrais e a possibilidade de demissão no curso do estágio, retomando mecanismos presentes na PEC 32. Todas essas medidas convergem para fragilizar a estabilidade, que não é privilégio, mas garantia republicana de proteção contra pressões político-partidárias e interesses privados.

No campo das carreiras e da remuneração, duas mudanças de grande impacto estão em pauta. A primeira é a organização dos cargos pela sistemática de posto ou posição, homogeneizando níveis de progressão e rompendo com a lógica de desenvolvimento funcional vinculada às carreiras. A segunda é a introdução dos bônus de desempenho, associados às avaliações periódicas e ao cumprimento de metas institucionais, o que tende a reduzir o peso do salário base e a transformar a remuneração em mecanismo de competição e fragmentação. A chamada “tabela única”, com diferença de apenas 50% entre o início e o fim das carreiras, reforça esse horizonte de achatamento e desvalorização.

Ao mesmo tempo, o discurso de combate a privilégios e supersalários é utilizado como cortina de fumaça. Os dados demonstram que apenas 0,3% dos servidores recebem acima de R$ 42 mil, enquanto a imensa maioria ganha entre 2 e 6 salários mínimos. Da mesma forma, a questão dos 60 dias de férias atinge menos de 0,3% do funcionalismo, concentrados em setores como o Judiciário e o Ministério Público. A retórica, portanto, opera como engodo: busca legitimar uma reforma que recairá sobre a massa dos servidores e, sobretudo, sobre a população que depende dos serviços públicos.

As consequências dessa reforma vão além do funcionalismo. Ao fragilizar concursos públicos, estimular contratações precárias e priorizar metas quantitativas, o projeto ameaça a continuidade e a qualidade das políticas públicas. Na saúde, pode dificultar a fixação de médicos em regiões vulneráveis; na educação, tende a gerar rotatividade docente e perda de planejamento pedagógico; na previdência e assistência social, aumentará filas e atrasos, prejudicando diretamente a população mais pobre. O que está em jogo não é apenas a gestão, mas a própria concepção de cidadania: sem serviços universais, a democracia se esvazia.

Do ponto de vista econômico, o impacto se estende especialmente aos municípios menores, onde o funcionalismo é motor de dinamização econômica. A retração salarial, a redução de servidores estáveis e a precarização do trabalho significam menos consumo, menos arrecadação local e maior aprofundamento das desigualdades regionais. O modelo de bônus por desempenho, ao privilegiar atividades que geram números rápidos, tende ainda a distorcer prioridades e enfraquecer áreas estratégicas, como auditoria e fiscalização ambiental.

Outro aspecto central é a forma autoritária de condução da proposta. A ausência de debate qualificado, a pressa na tramitação e a falta de estudos técnicos consistentes revelam o caráter político da reforma: trata-se de implementar uma agenda de mercado que atende ao grande capital e reconfigura o Estado segundo a lógica da mercantilização. A participação social, já fragilizada, é substituída por arranjos tecnocráticos que buscam legitimar medidas regressivas.

Nesse contexto, a resistência sindical e social assume papel decisivo. Não se trata apenas de defender direitos corporativos, mas de afirmar o serviço público como condição de democracia e cidadania. Greves, paralisações, campanhas de esclarecimento e pressão parlamentar compõem a estratégia de enfrentamento, articulada em âmbito nacional por entidades como o ANDES-SN e o Fonasefe. A luta contra a Reforma Administrativa é, em última instância, a luta pela preservação de um Estado público, democrático e comprometido com a universalização de direitos.

O que se coloca, portanto, é uma escolha de projeto de país. De um lado, a proposta de Estado mínimo, com servidores precarizados, carreiras achatadas e serviços reduzidos. De outro, a defesa de um Estado capaz de planejar, executar e garantir direitos sociais com qualidade. A Diretoria da ADUFPI, em consonância com o movimento sindical nacional, reafirma que a PEC 32 representa um retrocesso histórico e se soma às estratégias de desmonte já em curso. Nossa posição é clara: resistir à reforma é resistir ao avanço da precarização, do clientelismo e da mercantilização da vida social.